Vegetais murchos, frutos demasiado pequenos, feios, manchados ou que não compensa colher vão todos para o lixo no sistema atual, infelizmente. Mas nos terrenos agrícolas ao redor de Barcelona, a organização espanhola Espigoladors está a mostrar que há outro caminho. Quando os alimentos são desperdiçados, todos os recursos que foram usados para os produzir também vão para o lixo. Existem intervenções que todos podemos fazer, ao longo da cadeia alimentar. Recolher é um deles.
“Se não fosse pelo tempo que passaram na Espigoladors”, diz Mireia Barba, olhando pensativamente para uma caixa de curgetes retorcidas e pisadas, “os meus filhos poderiam pensar que a fruta e os legumes vêm de lojas, embrulhados em plástico. Eles podiam não perceber que os limões crescem numa árvore e que nascem com vários formatos e dimensões”.
Mireia Barba cofundou a Espigoladors para lutar contra o desperdício de alimentos na origem. Reconstruir a conexão entre as pessoas e a agricultura e aumentar a consciencialização sobre as práticas de cultivo são as ideias-chave no centro de tudo o que faz Mireia na Espigoladors, a organização que criou em 2014 com dois sócios, em resposta à crise económica em Espanha. Os objetivos são três: (i) reduzir e (em última instância) eliminar a perda e o desperdício de alimentos; (ii) proporcionar uma alimentação saudável aos mais necessitados; e (iii) constituir uma plataforma de acesso para as pessoas em risco de exclusão social e que, de outra forma, teriam dificuldade de entrar no mercado de trabalho.

Espigoladors é o termo catalão para respigadores, uma palavra oriunda das antigas práticas de recolha de restos produtos nos campos depois de os agricultores terminarem as colheitas. O termo ficou mais conhecido após o lançamento do documentário de 2000, premiado, da cineasta francesa Agnès Varda, The Gleaners and I, que expande a definição do termo para incorporar os que vivem de produtos abandonados (ou apenas os recolhem) e de itens indesejados, e os que incluem elementos reciclados em sua arte.
“Quando era criança, passei muito tempo na horta do meu avô” – Mireia Barba
“Vi produtos que seriam considerados imperfeitos hoje, mas naquela época comíamos tudo e era delicioso.” À medida que ia crescendo, via cada vez menos maçãs grandes, peras manchadas ou cenouras com formatos estranhos e começou a investigar as causas do desperdício de alimentos e a pensar em soluções.
O ponto de viragem foi a crise financeira de 2008, quando os números do desemprego em Espanha dispararam e muitas pessoas começaram a passar fome. “Naquele momento”, afirma, “o paradoxo de tantos alimentos saudáveis deitados fora, enquanto tanta gente ficava sem eles, parecia mais forte do que nunca; por isso decidi criar um projeto para lidar com estes dois aspetos.” Montou uma equipa de voluntários e uma série de agricultores disponibilizaram os seus terrenos agrícolas. A Espigoladors atualmente tem mais de 1.000 voluntários e 115 produtores, maioritariamente a trabalhar num “parque agrário” protegido pelo Estado nos arredores de Barcelona.
Num local improvável entre a cidade e o aeroporto, os “respigadores” chegam em grupos de 15, três vezes por semana, para apanhar alcachofras, repolhos, acelgas e aspargos indesejados.
Até agora, a Espigoladors estima ter recuperado cerca de 1.000 toneladas de alimentos, economizando 593 milhões de litros de água e evitando 536 toneladas de emissões de carbono. Quase um terço de todos os alimentos produzidos anualmente no mundo é deitado fora, e grande parte desse desperdício acontece no setor primário, mesmo no início da cadeia alimentar – um dos motivos por que Mireia decidiu concentrar aqui os seus esforços.
Políticas de preços e questões estéticas resultam em muitas perdas de alimentos no setor primário e esse foi um dos impulsionadores do, então único, modelo de Espigoladors, e o que o diferencia, por exemplo, dos bancos de alimentos, que direcionam esforços de armazenamento para a outra ponta da cadeia alimentar, predominantemente supermercados.
“Se os agricultores colherem produtos de tamanho, forma ou cor não conformes aos padrões do mercado, não podem vendê-los” – Mireia Barba
Se os agricultores colherem produtos com tamanho, forma ou cor não conformes aos padrões do mercado, não poderão vendê-los. A outra dificuldade surge quando o produto tem um preço inferior ao custo de produção e colheita, razão por que se veem campos cheios de fruta e vegetais a apodrecer.
Além da lógica de trabalhar com agricultores está a questão da frescura e da qualidade. Depois da crise, havia muitos bancos alimentares, por isso as pessoas não tinham fome, mas não estavam a comer bem. A comida distribuída não era saudável, e esse é um dos objetivos centrais da Espigoladors: promover o direito à alimentação saudável, razão por que só recolhem fruta e vegetais. Por exemplo, toda a maçã colhida é transformada em molho ou puré de maçã e vendida por toda a Espanha.
À medida que as dificuldades económicas da pandemia se tornaram evidentes, a equipa da Espigoladors redobrou os esforços para ajudar os mais necessitados, replicando o seu modelo de negócio em dua novas regiões catalãs: Tarragona, a sul de Barcelona, e a zona costeira de Maresme, a norte.
Outro dos objetivos da organização – proporcionar emprego e traçar caminhos de oportunidades futuras para grupos vulneráveis – também se revelaria mais crucial do que nunca durante a pandemia. Uma das fontes de financiamento da Espigoladors é a cozinha, onde parte dos produtos colhidos é transformada em conservas, vendidas por todo o país com o rótulo es-imperfect®.
Num só dia, a equipa da cozinha da Espigoladors pode descascar 600 quilos de maçã, que no seguinte serão transformados em 2.300 frascos de molho de maçã. A gama de produtos muda de acordo com a estação e pode incluir patês de cenoura com cominhos, geleia de ameixa ou sopa de abóbora, tudo feito com fruta e vegetais “feios” e sem aditivos na confeção. Muitos dos que trabalham na cozinha têm dificuldade em encontrar trabalho de outra forma: jovens, mulheres mais velhas, imigrantes e prisioneiros recém-libertados.
“Quando se tem fé nas pessoas, o retorno é extraordinário” – Mireia Barba
“A capacidade de transformação é incrível”, afirma Mireia. “Vemos pessoas que não tinham quaisquer oportunidades, seis meses ou um ano antes, e, graças ao trabalho que fazem aqui, saem com nova confiança e novas competências. Quando se tem fé nas pessoas, o retorno é extraordinário.”
Mireia refere também o programa como uma forma de trazer pessoas da cidade para o campo e de estas conhecerem em primeira mão a cadeia alimentar desde o início. “As pessoas não entendem o trabalho que está por trás da produção de cada vegetal e fruto e os recursos necessários para os fazer crescer. Estão cada vez mais desconectadas das origens dos alimentos que comem; da terra e dos campos. Esta falta de conexão significa que a agricultura e o cultivo de alimentos perderam o seu valor social. ”
Uma componente fundamental da consciencialização dos Espigoladors ocorre nas escolas, através de workshops e exercícios de dramatização para descobrir o que sabem as crianças. Com formação e experiência como educadora social, essa é uma parte do trabalho que Mireia considera mais inspirador. “Muitas vezes são as crianças que apresentam soluções brilhantes para os desafios”, afirma. “Estão totalmente livres de ideias preconcebidas e têm a mente totalmente aberta. Como adultos, perdemos essa capacidade. ”

Es-imperfect é a primeira marca espanhola a comercializar excedentes de fruta e vegetais de alta qualidade. Precisamos de agradecer os produtos de formato estranho em vez de os deitar fora.
Esta organização está a começar a ver uma mudança. Em março de 2020, uma nova lei aprovada na Catalunha permite o reconhecimento oficial da recolha e introduzirá regulamentação de controlo do desperdício alimentar. Se tudo correr bem, entrará em vigor e, entre outras coisas, incluirá a obrigação de os produtores quantificarem e declararem as perdas de alimentos e exigirá que nos restaurantes sejam fornecidos recipientes para se poder levar para casa os restos de comida.
Como agentes de mudança, os fundadores da Espigoladors estão a pressionar para que esta se transforme em lei nacional. “É incrível porque a palavra ‘respigo’ era quase desconhecida há apenas alguns anos”, diz Mireia, “e agora é mencionada numa lei nova.” Contudo, reconhece que ainda há um longo caminho a percorrer para provocar uma mudança na sociedade em direção à verdadeira sustentabilidade. “Quando as pessoas perguntam qual é nosso objetivo final digo-lhes sempre que é uma visão do mundo em que não teremos de existir.”
Foi com este slogan que em novembro de 2013 surgiu no Intendente, Lisboa, a primeira delegação da cooperativa Fruta Feia, criada para “reduzir as toneladas de alimentos de qualidade que são devolvidos à terra todos os anos pelos agricultores e, com isso, evitar também o gasto desnecessário dos recursos usados na sua produção, como a água, as terras cultiváveis, a energia e o tempo de trabalho”, afirma a organização.
Sem a ambição de integrar faixas populacionais afastadas das oportunidades de emprego e sem procupações nutricionais de consumo alimentar, o principal objetivo é sensibilizar a sociedade para distinguir o valor nutricional dos alimentos da sua aparência perfeita. Pretendem consciencializar “a população para a problemática do desperdício alimentar e para o facto de que alimentos feios não são lixo”, além de que os produtos da época e produzidos em locais mais próximos tornam-se mais baratos em toda a cadeia, nomeadamente para o consumidor.
Com 14 delegações nos concelhos de Lisboa e do Porto, recebem produtos de mais de 200 produtores de todo o País e continuam na tentativa de alargar as delegações bem como os produtores com que trabalham. Mas as atividades que desenvolvem chegam também à sensibilização e formação dos mais novos, atraves de workshops que realizam para crianças do ensino pré-escolar ao 3.º ciclo do básico, com conteúdos adaptados ao ano de escolaridade.
Saiba mais sobre o desperdício e a recolha de alimentos no site Espigoladors. Se vive numa região de produção agrícola, este pode ser o primeiro passo para criar uma iniciativa local de recolha!
Se vive numa das zonas com delegações da Fruta Feia, inscreva-se a participe neste movimento de consumo de frutos e legumes não padronizados, mas igualmente bons e nutritivos.

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